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domingo, junho 24, 2018

Um país autoritário que não acertou as contas com sua história



Adailtom Alves Teixeira

Há uma pequena história que ouvia em minha adolescência sobre violência famíliar: O pai, ofendido pelo patrão, chegava em casa e gritava ou batia na esposa; a esposa batia no filho; a criança, por sua vez, descontava no elo mais fraco, o cachorro. Assim, ao invés do mais forte cuidar do mais fraco, como deveria ser uma sociedade civilizada, todos vão reproduzindo a violência para o andar de baixo. Uma demonstração de que somos autoritários e violentos.

Quem está no andar de baixo? Muitos, é possível mesmo afirmar que a maioria, quando somamos mulheres, negros e todas as minorias que quando somadas são a esmagadora maioria dos brasileiros. Os índices de violências contra jovens negros são altíssimos, contra as mulheres e a comunidade LGBT, também. Claro que a violência é reproduzido intra-classe, intra-grupos, afinal a ideologia dominante perpasso a todos sem distinção.

Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, mostra seu personagem principal na infância fazendo de seu negrinho uma besta, no qual monta e chicoteia. Anos mais tarde, após a liberdade concedida, é o negro Prudêncio que, ao adquirir um escravo lhe chicoteia, montado em suas costas. A cena é presenciada por Brás Cubas e este pede-lhe que perdoe o negro, ao que Prudêncio prontamente atende. A cena é um retrato da reprodução da violência, ao mesmo tempo em que demonstra que Prudêncio, mesmo liberto, não é tão livre quanto pensa, já que obedece ao que seu antigo dono “lhe pede”. Típico de nosso autoritarismo: mesmo o violento, sabe que a violência do de cima pode ser pior.

A clareza de que não acertamos as contas com a escravidão, além das mortes diárias nas periferias do Brasil, está presente na música Haiti, de Gilberto Gil e Caetano Veloso, sobretudo nos versos abaixo:
(...) a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
(CAETANO, GIL).

A música deixa claro a hierarquização e a violência herdada da escravidão, mais de um século depois, não conseguimos resolver esse problema. Mas a clareza maior está em nosso cotidiano com as diversas violências, continuamos a padecer e, muitas vezes, a naturalizar a quantidade de absurdos.

Exemplos? São muitos. Quando o comandante do exército, em fevereiro desse ano, general Eduardo Villas Bôas, pediu a “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. Assim estaria livre para sobrepor-se à lei? O que melhorou para os moradores dos morros cariocas? Cem dias após a morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, onde estão os responsáveis, punidos? E o menino Marcos Vinícius, baleado no Complexo da Maré e que ainda parecia acreditar em uma mudança por meio da escola, perguntava a sua mãe: “Ele não viu que estava com roupa de escola?” Não, Vinicius. Pois o lugar que habitava é o lugar dos de baixo, no qual não se pede licença e as leis parece não existir; o lugar dos de baixo, é onde a barbárie permanece diariamente.

Quando iremos acertar as contas com nossa história e fazer de nosso país um lugar civilizado?