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domingo, agosto 25, 2024

liberdade?

a burguesia, cotidianamente, promete

a liberdade em sua democracia

eu e tu, em nosso duro cotidiano

só pensamos em poder sobreviver

há liberdade quando nossa luta

é a cada dia buscar o nosso comer?

quarta-feira, agosto 14, 2024

Urbs Dystopia

No coração da floresta Amazônica, onde o verde outrora dominava, ergueu-se uma cidade que parecia saída dos pesadelos mais profundos. Old Port, como fora batizada, não surgiu por capricho da natureza ou por necessidade humana, mas como uma criatura moldada à força, forjada entre o fogo e o ferro. Os ventos que um dia carregaram o cheiro fresco da vegetação agora sopravam fumaça, e as águas dos rios, antes cristalinas, corriam como se carregassem a sombra do futuro sombrio da cidade.

Old Port não era um lugar onde o progresso tivesse qualquer relação com o bem-estar humano. Ali, o desenvolvimento era medido pelo brilho metálico das estruturas que dominavam o horizonte, pelo rugido constante das máquinas que nunca descansavam, e pelo crepitar do fogo que, assim como a cidade, parecia indomável. Para que Old Port existisse, povos antigos foram forçados a deixar suas terras sagradas, expulsos pela ambição dos homens que viam na floresta apenas um obstáculo a ser superado.

A cidade nasceu do fogo que queimava a floresta sem remorso, transformando árvores centenárias em cinzas e ferro. As chamas que devoravam a vegetação também moldavam o ferro bruto, que, em estado líquido, dava forma às estruturas maciças e sombrias que compunham a espinha dorsal de Old Port. O ferro era a carne da cidade, e o fogo, o seu sangue. A cada dia, a floresta recuava, e a cidade se expandia, consumindo tudo ao seu redor.

As pessoas que habitavam Old Port não eram como as de outros lugares. Atarracadas e de estatura reduzida, pareciam carregar no corpo o peso do ferro que sustentava a cidade. Não havia espaço para crescer em Old Port, nem física nem espiritualmente. As crianças nasciam pequenas e doentes, e os adultos envelheciam rapidamente, como se o próprio ar da cidade sugasse suas energias. Ninguém vivia além dos trinta anos, e a morte era uma presença constante, quase familiar, na vida dos habitantes.

O fogo, que queimava a floresta, também se tornara parte do cotidiano. Em Old Port, o lixo não era recolhido; ele era queimado nos quintais das casas, alimentando a atmosfera de fumaça espessa que nunca se dissipava. O saneamento básico era um conceito estranho à cidade, onde a água potável precisava ser fervida ou comprada a preços exorbitantes. Farmácias brotavam como ervas daninhas, uma para cada mil habitantes, vendendo remédios que ofereciam alívio temporário para os males crônicos que afligiam a população.

Ainda assim, o paradoxo da cidade era visível nas ruas. As pessoas, embora doentes e envelhecidas antes do tempo, dirigiam carros grandes e potentes, que pareciam desafiar a decadência que os cercava. Old Port era uma massa cinzenta de ferro e concreto, sempre envolta em uma névoa de fumaça, onde o verde da floresta era apenas uma lembrança distante.

No restante do país, Old Port era vista com medo e repulsa. Não apenas pela destruição que causava ao meio ambiente, mas pela ameaça que representava para outras cidades. A cidade não crescia em população, mas em extensão, espalhando-se como uma mancha escura pelo território. As pessoas temiam que os hábitos de Old Port se infiltrassem em suas próprias cidades, que o fogo e o ferro se tornassem suas realidades.

Old Port era uma ferida que nunca curava, uma cidade que, em vez de crescer e florescer, apenas se espalhava como um câncer, devorando tudo em seu caminho. E, enquanto o fogo queimava e o ferro dominava, a cidade continuava a se expandir, levando consigo a escuridão que assustava até mesmo aqueles que nunca a tinham visto. O medo da conurbação se espalhava pelo país, e Old Port, como uma entidade viva e faminta, avançava lenta e inexoravelmente, ameaçando transformar toda a nação em um reflexo distorcido de si mesma.

sexta-feira, agosto 09, 2024

O inferno da razão

 

A Cidade das Engrenagens

No século XIX, quando o mundo se expandia rapidamente na Revolução Industrial, uma cidade se erguia entre as névoas das máquinas e o vapor das fábricas. Essa cidade, que se estendia em um cenário de ar futurista, era conhecida como Mecania. Com suas torres metálicas alcançando os céus e suas ruas pavimentadas de ferro e vidro, Mecania parecia a personificação de um progresso irrefreável, mas escondia em seu ventre uma ordem social rígida e cruel, semelhante aos círculos descritos por Dante Alighieri em sua Divina Comédia.

O Paraíso dos Empresários

No alto das torres mais reluzentes, acima das nuvens de fuligem, viviam os Empresários. Estes homens e mulheres, envoltos em luxos inimagináveis, governavam a cidade com punhos de aço. Seus palácios eram feitos de cristal e ouro, reluzindo sob a luz artificial que banhava o Paraíso. Aqui, tudo era abundância: banquetes, prazeres e um conforto que o resto da cidade apenas sonhava. A propaganda incessante que circulava entre os canais da cidade exaltava esses Empresários como os guardiões do progresso, aqueles que moviam as engrenagens da civilização. No entanto, eles viviam isolados, separados do resto do mundo, como deuses intocáveis.

O Purgatório dos Gerentes

Abaixo do Paraíso, nas camadas intermediárias da cidade, habitava a classe média: os Gerentes. Eles viviam em apartamentos modernos, organizados em fileiras perfeitas, sem luxo, mas com tudo o que era necessário para uma vida estável. No Purgatório, a ordem e a eficiência eram a regra. Cada movimento era cronometrado, cada atividade racionalizada. Pequenos problemas e contratempos surgiam ocasionalmente, mas nada comparado aos horrores dos níveis inferiores. Os Gerentes acreditavam na promessa de que, com trabalho duro e dedicação, poderiam ascender ao Paraíso, mas poucos conseguiam, e aqueles que falhavam eram relegados às camadas inferiores.

O Inferno dos Trabalhadores

Nos subúrbios sombrios e opressivos da cidade, onde a luz do sol nunca alcançava, vivia a massa trabalhadora. Eles eram a base da pirâmide, os que mantinham as máquinas de Mecania funcionando dia e noite. Aqui, o Inferno era uma realidade diária. As ruas eram labirintos de metal corroído, e as habitações não passavam de cubículos amontoados, onde mal cabia uma pessoa. O ar era pesado, impregnado de fumaça e óleo, e o som constante das máquinas era ensurdecedor. Trabalhadores se moviam como autômatos, suas vidas completamente controladas pelo relógio. A propaganda que lhes era imposta, incessantemente, exaltava o valor do trabalho, a honra de servir à cidade, mas, na verdade, eles sabiam que eram apenas engrenagens descartáveis.

A Propaganda da Racionalização

Em toda Mecania, a propaganda era uma presença constante, penetrando nas mentes dos habitantes como uma melodia hipnótica. “Trabalhe com honra, viva com razão” dizia um dos slogans mais repetidos. A racionalização das atividades era o mantra da cidade; nada era feito sem um propósito claro e utilitário. O tempo de lazer, o sono, até mesmo as interações sociais eram medidas e otimizadas. Os Trabalhadores eram doutrinados a acreditar que seu sofrimento era necessário, que sua dedicação sustentava a grandeza de Mecania. Entretanto, poucos percebiam que essa racionalidade imposta era, na verdade, a própria fonte de seu tormento.

O Despertar

Entre os Trabalhadores, no entanto, começava a surgir uma semente de insurreição. Enquanto as máquinas continuavam a ranger, e a cidade se movia no ritmo mecânico de sua rotina implacável, um pequeno grupo começou a questionar o status quo. Eles se encontravam em segredo, nos recessos mais profundos da cidade, onde nem mesmo as câmeras de vigilância chegavam. Esses rebeldes sussurravam sobre a possibilidade de outra vida, de uma cidade sem círculos, onde todos pudessem viver como iguais.

Ao mesmo tempo, nos andares do Purgatório, alguns Gerentes começaram a se dar conta da futilidade de suas aspirações. Quanto mais se esforçavam para subir, mais se afundavam na espiral de exigências intermináveis. Alguns começaram a olhar para baixo, para o Inferno dos Trabalhadores, e a questionar se realmente valia a pena seguir a rota traçada para o Paraíso.

E, no topo das torres, nos palácios de cristal e ouro, a calmaria começava a se romper. As disputas internas pelo poder se intensificavam, e o medo de uma rebelião das massas começava a se insinuar nos salões onde, até então, só havia lugar para o prazer.

A Revolução das Engrenagens

O que se seguiu foi um choque de mundos. Trabalhadores e Gerentes, em uma aliança improvável, começaram a sabotar as máquinas que moviam Mecania. Greves, incêndios e rebeliões eclodiram por toda a cidade. O Inferno se inflamava, e seu calor subia, atingindo o Purgatório e, finalmente, ameaçando os alicerces do Paraíso.

Os Empresários, desesperados, tentaram usar toda a força de seu poder para conter a revolta, mas descobriram que suas engrenagens, sem o trabalho das massas, não giravam mais. O sonho racional de Mecania começava a ruir, peça por peça.

Um Novo Horizonte

Depois de meses de conflito, Mecania estava irreconhecível. As torres desabaram, as ruas foram tomadas pelos rebeldes, e o céu, antes poluído pelo vapor, começou a clarear. O velho mundo havia sido destruído, mas a promessa de um novo surgia no horizonte. Sem a tirania da racionalização extrema, os sobreviventes começaram a construir algo novo, uma cidade onde cada um pudesse encontrar seu lugar, não por imposição da força, mas por direito humano.

O futuro, embora incerto, parecia brilhar com uma luz que Mecania nunca conhecera até então.