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sexta-feira, janeiro 20, 2023

A procura

Abriu os olhos com certa dificuldade diante da luz do sol que acariciava seu rosto. O corpo estava encostado a uma parede junto a uma grande lixeira. O cheiro denunciava o ambiente e muito mais. Olhou seus pés, havia apenas um sapato. Ao subir o olhar, o vômito em sua camisa e parte da calça, fez com que virasse o rosto. Começou a se perguntar que lugar era aquele e como veio parar ali. Tudo era estranho. Levantou-se com dificuldade, deu alguns passos para poder olhar ao redor, mancou devido a diferença entre as pernas, apenas um pé calçado. Do outro lado da rua passou um senhor olhando-o com desprezo. Continuava a se perguntar que lugar era aquele. Precisava ir embora, mas pra onde?

Voltou para próximo da lixeira para ver se era os fundos de um bar ou restaurante. A placa indicou tratar-se de um bar, porém estava fechado. Avistou uma torneira e foi até ela para jogar um pouco de água na cara; jogou água na roupa para tentar tirar o excesso do vômito e do cheiro. Avistou, próximo dali, um posto de gasolina. Se encaminhou até lá. Quando passava alguém por ele, parecia ver um cachorro sarnento. Ainda não conseguia lembrar como chegou até ali, muito menos que lugar era aquele.

Chegou ao posto de combustível e pediu para usar o banheiro. Com desprezo o frentista indicou a direção com a recomendação de não emporcalhar o ambiente. Urinou. Lavou as mãos e o rosto. Aproveitou para olhar-se no pequeno espelho. Afastou-se. Não sabia quem era a figura refletida. Tornou a olhar. Um certo desespero começou a brotar. "Que porra de lugar era aquele? Como veio parar ali? Quem era a figura no espelho?" Sua cabeça, além de doer, girava. Começou a buscar algum momento em sua memória, para tentar identificar quem era, de onde vinha. Só aparecia em sua mente uma ladeira e a descida atabalhoada de um corpo infantil que caía lá embaixo. "O que diabos isso significa?", se perguntava. Nada. Só o vazio e a dor.

Tirou o único sapato e começou a caminhar completamente descalço. Vestido em roupas nojentas e habitando um corpo desconhecido. Começou a caminhar e a cada pessoa que cruzava, começou a perguntar se lhe conheciam. As pessoas se afastavam sem responder. O desespero crescia. Começou a correr e a gritar: "Quem sou eu? Quem sou eu?" Tropeçou e caiu, partindo-se em pedaços tão miúdos, que era impossível juntá-los. Tudo era dilaceração, silêncio e escuridão.  

quinta-feira, janeiro 19, 2023

Só mais 72 horas

O mundo está pelo avesso: corruptos, drogados e degenerados mandando no país. "Será que ninguém mais vê?" Berrava pra si mesmo. Ele que não permitiria isso. Por isso tem feito o que tem feito e continuará a fazer. Por isso se mantém bem informado e pedindo ajuda externa ao rezar para pneus - "Deus age por muitas formas!" - e acedendo luzes de celular juntos com mais pessoas conscientes, chamando atenção de extraterrestres. É certo que alguém os socorrerá e o país voltará aos trilhos. "Só mais 72 horas".

Entretanto, sua cabeça começou a relembrar e a lamentar: "Como não conseguiram nada, após meses em frente as forças morais deste país?" se perguntava, sem resposta. Lembrou que agora vivia sozinho e pensava em reprogramar seu rumo, pois após tanta batalha, voltou pra casa e não encontrou mais mulher e filhos. Estaria louco? "Será que devo procurar ajuda de um profissional? Um psicanalista, talvez?" Lembrou-se que havia lido em algum lugar, não lembrava onde, que Freud era um degenerado. Então "essa gente não é confiável".

Consultou o celular para saber informações de seu herói, mas tudo era silêncio. Sua cabeça girava sem saber quem poderia lhe socorrer. O país entrava em parafuso e ele não podia desistir. Por onde andaria sua esposa, seu esteio em momentos tão difíceis? "Por que ela se foi, se estou do lado certo?" Armado de suas cores preferidas foi ao encontro dos seus, "Uma gente branca e honesta, que só quer o bem de nossas famílias e da pátria. É preciso lutar." Ao chegar ao local combinado, soube que em 72 horas tudo se resolveria. "A vitória virá." Todos lhe dariam razão, sua esposa voltaria e pediria perdão, abraçaria seus filhos e contaria a história dessa luta para que não esquecessem. Só mais 72 horas."

terça-feira, janeiro 03, 2023

sampa

quarenta dias no deserto paulistano

rever amigos, familiares

alimentar a fé nos laços

juntar forças para ver meu país voltar pro eixo


não haverá jejum

as festas de fim de ano pedem o pecado da comilança

(o difícil é saber que milhões de irmãs e irmãos

caminhem no deserto da fome)

a força ainda está em reconhecer nossa fraqueza humana

ser empático, ajudar sempre que possível

e todos os dias lutar, lutar pela real mudança

por um mundo onde não haja fome

conforme a palavra, somos irmãos e irmãs

nossa força está por vir, na construção da igualdade na diversidade


há tantas fomes para serem supridas

é preciso haver pão e arte

alimentar corpo e espírito

de todos os seres, em toda parte


poder e glória da grana, cidade esfinge

aproveitar tuas belezas

sem perder-se em teus enigmas

não seduzir-se por seu canto

a verdade vem de tuas margens 

que tentas encobrir


saber que a cada palmo de tuas linhas

há mãos humanas, suor, lágrimas e exploração

ainda que tenhas um poder que te rege

a maior força é das mãos que te construíram 

(ainda que apartadas da tua fruição)

mas um dia, para si, a tomarão


07/12/2022