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sexta-feira, maio 31, 2024

dói teu abraço descuidado

dói teu abraço descuidado
teu beijo sem vontade
teu chegar querendo partir
dói tua ausência
em presença de mim

quinta-feira, maio 30, 2024

O tempo vincado em nossas faces

Em um banco de praça, sob a sombra de uma frondosa árvore, sentavam-se dois velhos amigos. As tardes de primavera eram um alento para seus corpos cansados e suas mentes repletas de memórias. João e Pedro conheciam-se desde a infância, compartilhando uma amizade que resistira ao tempo e às adversidades da vida, nem sempre vividas juntas, mas sempre compartilhadas.

João, de cabelos brancos como neve e olhos que ainda brilhavam com a curiosidade de um jovem, suspirou profundamente. Estava reflexivo e saudosista, começou: "Lembra, Pedro, de quando subíamos naquelas árvores lá na fazenda do seu avô? Como era bom sentir o vento no rosto, a liberdade..."

Pedro, com seu rosto sulcado por rugas profundas que contavam histórias de batalhas vividas, sorriu nostalgicamente. "Lembro sim. E das tardes pescando no rio? Quantas vezes voltávamos para casa só com histórias para contar, porque peixe mesmo, raramente pegávamos".

Ambos riram com a lembrança, um riso que ecoava com a suavidade de folhas ao vento. É certo que passava por suas cabeças a pergunta: quantas primaveras mais? Por isso as palavras vinham pausadas, cada uma carregada de significados profundos, como se cada lembrança fosse um tesouro desenterrado do baú do tempo.

"Você já parou pra pensar, Pedro," João continuou após um momento de silêncio, "como nossas vidas foram moldadas por tantas coisas fora do nosso controle? As lutas, as crises, as perdas... tantas coisas nos foram tiradas, e mesmo assim, seguimos em frente."

Pedro assentiu lentamente, seu olhar perdido nas crianças que brincavam à distância, lembrando-se de sua própria juventude. "Sim, João, seguimos em frente. Mas não fomos nós que escolhemos, foi a vida que nos empurrou. Quantos sonhos tivemos que abandonar, quantas vezes tivemos que nos reinventar? Há que se seguir a caminhar!"

Um silêncio contemplativo pairou entre eles, enquanto os sons da praça preenchiam o ar. Os pássaros cantavam, as folhas farfalhavam, e o riso das crianças se misturava com o murmúrio da fonte próxima. A conversa, diferente de outros dias, ganhava tons mais melancólicos.

"Pedro, você acha que, no fim das contas, valeu a pena?" perguntou João, seus olhos buscando respostas nas profundezas dos olhos do amigo. Mas, ainda que não soubesse propriamente a resposta que viria do amigo, sabia, de algum modo, que indagar sobre o sentido da vida sempre nos leva a lugares profundos dentro de nós.

Pedro pensou por um momento antes de responder. "Sabe, João, eu sempre acreditei que a vida é como uma viagem de trem. Nem sempre controlamos o destino, muitas vezes perdemos coisas importantes pelo caminho. Mas as paisagens que vemos, as pessoas que encontramos, os momentos que vivemos... esses são nossos tesouros".

João acenou com a cabeça, encarou como sabedoria as palavras do amigo, embora no fundo tenha visto como certo clichê. Mas que resposta poderia ter após tantos anos de percalços, amores e alegrias construídas? Palavras nem sempre conseguem expressar o vivido e o que se sente, sobretudo em uma vida tão longa. Devolveu no mesmo tom: "Acho que você está certo, Pedro. A vida nos rouba muitas coisas, mas também nos dá outras tantas. E talvez, no final, sejam essas dádivas que realmente importam".

O velho amigo, com um olhar firme e sereno, concluiu: "Não adianta apressar a vida, meu amigo. Somos as sobras do que nos roubaram e um pouco do que conseguimos pegar pelo caminho. E talvez, isso seja o suficiente".

João sorriu, sentindo um calor reconfortante no peito por estar ao lado de Pedro, ele percebeu que, apesar de tudo, tinham vivido até ali uma vida rica e cheia de significados. Ali, naquela praça ensolarada, com o vento em seus rostos, eles encontraram certa paz nas memórias compartilhadas e na certeza daquela sólida amizade. Era continuar a juntar as sobras e os cacos do caminho, para ver se ainda era possível construir um bonito vaso. A praça e o velho amigo estariam ali a lhe acompanhar.

quarta-feira, maio 29, 2024

no verão amazônico

no verão amazônico

um rio de fumaça

denso, inunda o ar

há corpos e vozes

em luta, a gritar

balas velozes

segue a lhes matar

terça-feira, maio 28, 2024

Direito de amar

Na pequena cidade de Encanto, onde as tradições e costumes eram rigidamente preservados, tudo mudou num fim de tarde ensolarado. Na praça central, sob o olhar vigilante da estátua do fundador da cidade, duas jovens mulheres, Marina e Isabel, compartilharam um beijo apaixonado. Era um gesto simples, um ato de amor puro, mas naquele contexto, foi o suficiente para abalar as estruturas da comunidade.

Marina e Isabel tinham se conhecido na universidade local, onde Marina estudava literatura e Isabel, música. A paixão por artes e a luta por um mundo mais justo as uniu, e logo se viram inseparáveis. A relação delas, embora ainda velada para muitos, floresceu em meio a conversas intelectuais, risadas e momentos de ternura.

Quando o beijo aconteceu, algumas pessoas ao redor pararam para observar. Entre elas, Dona Marta, a florista da cidade, conhecida por seu olhar vigilante e língua afiada. "Mas que pouca vergonha!", exclamou, ao que rapidamente outras pessoas começaram a concordar e sussurrar. Comentários maldosos se espalharam como pólvora. "Isso é um desrespeito!", "Onde vamos parar com esse tipo de comportamento?".

Logo, o burburinho chegou aos ouvidos de Padre João, um homem rígido em suas convicções, que se sentiu na obrigação de fazer um sermão na missa do domingo seguinte. "Estamos vivendo tempos de depravação. O que aconteceu na praça é um sinal de que precisamos nos voltar para Deus e para os valores que construíram nossa cidade", disse ele, sem mencionar nomes, mas todos sabiam a quem se referia.

A notícia correu a cidade, e Marina e Isabel, que inicialmente não tinham percebido a extensão do impacto de seu beijo, logo se viram no centro de uma tempestade. As fofocas não se limitavam mais às esquinas e mercados; estavam em todas as redes sociais, nas mensagens de texto trocadas freneticamente entre moradores, até mesmo no jornal local, que insinuava que a moral da cidade estava em perigo.

Ambas começaram a sentir o peso do preconceito em suas próprias peles. Marina foi afastada de algumas atividades na universidade e Isabel teve concertos cancelados. As ameaças e insultos anônimos não tardaram a chegar. Contudo, no meio de tanta hostilidade, a solidariedade também começou a surgir. Pequenos grupos de apoio se formaram, compostos por amigos, colegas e pessoas que acreditavam no direito de amar livremente.

Determinadas a lutar contra a intolerância, Marina e Isabel decidiram organizar uma manifestação pacífica. Usando as redes sociais, mobilizaram pessoas de toda a região para se juntarem a elas na praça onde tudo começou. O evento, chamado de "Amor Sem Barreiras", foi planejado para ser uma celebração do amor em todas as suas formas.

No dia marcado, a praça de Encanto se encheu de cores, música e diversidade. Casais de todas as orientações, famílias, amigos e aliados se uniram para mostrar que o amor não deveria ser um motivo de vergonha ou discriminação. Marina e Isabel, de mãos dadas, subiram ao palco improvisado e falaram sobre a importância de respeitar o amor e a individualidade de cada um.

"Não queremos nada mais do que o direito de amar", disse Isabel, sua voz firme e emocionada. "Estamos aqui para dizer que o amor é bonito, seja ele como for. E que nenhuma tradição ou preconceito pode nos dizer o contrário." E nesse momento, ao som de uma música especialmente composta por Isabel, conclamou todos os casais a um longo beijo com seus parceires.

O evento foi um marco na história da cidade. Apesar da resistência de alguns, a demonstração de união e apoio foi um passo significativo rumo à aceitação. A partir daquele dia, Encanto começou a se transformar. Lentamente, as mentes foram se abrindo, e o amor de Marina e Isabel, outrora alvo de tanto preconceito, tornou-se um símbolo de resistência e mudança.

E assim, em meio a uma praça que testemunhou tanto ódio, floresceu uma nova esperança. Uma esperança de que, um dia, o amor seria celebrado em todas as suas formas, sem medo, sem preconceito, apenas com a pureza que lhe é inerente. 

domingo, maio 26, 2024

Um mundo a descobrir


O sol do meio-dia ardia implacável sobre o sertão cearense, e o rio seco serpenteava como uma cicatriz através da paisagem desolada. Francisco, um menino de apenas dez anos, caminhava descalço sobre o leito arenoso do rio, sentindo os grãos de areia quentes queimarem seus pés. A cada passo, o chão parecia vibrar de calor, e o horizonte tremulava como um sonho distante e intangível.

Francisco sempre fora um sonhador. Apesar das dificuldades de sua vida no sertão, sua imaginação era fértil como a caatinga após as raras chuvas. Naquela tarde, enquanto caminhava pelo rio seco, ele sonhava com outras vidas e outros mundos. Seus olhos, tão escuros e profundos quanto o céu noturno, fitavam o vazio com um brilho de esperança e curiosidade.

Ele imaginava-se um explorador em um mundo desconhecido, onde o rio seco se transformava em um vasto mar azul, com ondas altas e espuma branca. Sentia a brisa salgada do oceano em seu rosto, e ouvia o som das gaivotas sobrevoando seu barco imaginário. Francisco podia quase ver a linha do horizonte onde o céu encontrava o mar, prometendo aventuras sem fim.

Em sua mente, ele navegava por ilhas exóticas, cobertas de florestas densas e habitadas por criaturas fantásticas. Havia dragões alados e fadas luminosas, e ele era o herói corajoso que desbravava aqueles territórios inexplorados, resgatando tesouros perdidos e desvendando segredos antigos. O som do vento nas folhas das árvores misturava-se ao canto dos pássaros, criando uma melodia encantadora que ecoava em seu coração.

De repente, uma sombra cruzou o caminho de Francisco, trazendo-o de volta à realidade árida do sertão. Era uma nuvem passageira, uma bênção momentânea no calor abrasador. Ele parou e olhou para o céu, agradecendo pela breve pausa do sol escaldante. A nuvem continuou sua jornada, mas a sombra que ela deixara ainda persistia na mente do menino, como um lembrete de que a esperança e a imaginação podem florescer mesmo nos lugares mais inóspitos.

Enquanto retomava sua caminhada, Francisco avistou algo brilhando na areia mais adiante. Correu até o local e encontrou um pequeno espelho quebrado, provavelmente deixado por algum viajante. Pegou o espelho com cuidado, observando seu próprio reflexo fragmentado. Seus olhos sonhadores pareciam mais brilhantes do que nunca, refletindo a luz do sol e o vasto mundo interior que habitava sua mente.

Com o espelho na mão, Francisco continuou sua jornada pelo rio seco, mas agora ele tinha um novo objetivo. Ele decidiu que, um dia, sairia do sertão e exploraria o mundo além das dunas e caatingas. Ele conheceria oceanos de verdade, ilhas misteriosas e criaturas fantásticas. Ele seria o herói de suas próprias histórias.

O sol começou a se pôr, tingindo o céu com tons de laranja e rosa. Francisco sabia que era hora de voltar para casa, mas sua mente continuava a vagar por aqueles mundos imaginários. Cada passo no caminho de volta era acompanhado por uma promessa silenciosa: a de que um dia ele realizaria seus sonhos e mostraria ao mundo que, mesmo sob o sol escaldante do Ceará, um menino pode encontrar beleza, esperança e aventuras infinitas.

            E assim, com o coração cheio de sonhos e os pés descalços sobre a areia quente, Francisco caminhou de volta para sua pequena casa no sertão, levando consigo a certeza de que o mundo é vasto e cheio de possibilidades, esperando apenas para ser descoberto. 

sexta-feira, maio 03, 2024

meu menino

vejo meu menino
a correr, pé no chão
vejo hoje quem sou
e seguro sua mão

tanto tempo já passou
sonhos deixados para trás
mas o menino alertou:
sonhos não saem de cartaz

pega tua criança
veste aquela fantasia
que te trouxe até aqui
e vai cultivar tua alegria!