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segunda-feira, setembro 02, 2024

O retorno de Teotônio ou de quando a secura nos inunda

Teotônio desceu do ônibus com passos lentos, quase como se o peso de sua memória estivesse colado aos pés. Havia uma década desde que ele deixara Porto Velho, fugindo da cheia devastadora de 2014, que tragara casas e esperanças, inclusive as suas. Naquela época, a cidade parecia desmoronar sob o peso das águas enfurecidas do rio Madeira. Na bagagem, carregava sonhos de uma vida nova, longe da dor de ver sua terra submersa. Agora, ao pisar novamente no solo que um dia chamara de lar, o ar parecia pesado, não só pelo calor sufocante, mas por algo que ele ainda não conseguia nomear.

O ponto inicial de seu reencontro era o marco zero da cidade, o complexo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, símbolo de um passado que sempre o fascinara. Havia algo de poético nas velhas locomotivas enferrujadas, nas linhas férreas que pareciam sussurrar histórias de tempos imemoriais. Aquela era a sua conexão com a história, com o rio que corria em frente, o mesmo rio que lhe arrancara de sua terra. Na infância, costumava brincar por ali, imaginando-se um desbravador, um construtor dos trilhos que um dia cortaram a selva. Agora, o espaço estava reformado, revigorado, entregue novamente à população, como um presente que o tempo lhe devolvia.

Ele caminhou até a beira do rio, sentindo a brisa quente que acariciava seu rosto. O sol já começava a se esconder no horizonte, tingindo o céu com tons de laranja e vermelho. Teotônio esperava por aquele momento, o pôr do sol, como se nele pudesse encontrar respostas para as perguntas que o atormentavam. Mas o que encontrou foi uma cena desoladora: o rio Madeira, que um dia fora seu consolo, sua inspiração, parecia agora desfalecido, como se o brilho das águas estivesse sendo ofuscado por uma cortina densa de fumaça que pairava no ar. O azul do céu, tão cantado no hino, transmutara-se em outra cor.

Ele observou os ipês que enfeitavam a paisagem, suas flores amarelas tão vívidas e vibrantes em contraste com a cinza opacidade que dominava o ambiente. Era um contraste cruel, quase sarcástico. A fumaça das queimadas se infiltrava por todos os cantos, como um manto fúnebre cobrindo o que restava de beleza. Teotônio sentiu o peito apertar. A cada inspiração, parecia que sua alma se contaminava, que a névoa tóxica também invadia seus pensamentos.

“Como é possível?” ele murmurou para si mesmo, com a voz embargada. “Como é possível isso, aqui, na Amazônia? A maior floresta tropical do mundo, e respiramos o pior ar do mundo?”

As vozes que lhe respondiam eram os sussurros das árvores em agonia, o murmúrio das águas poluídas, o estalar dos galhos queimados. Para onde caminhava sua cidade, seu estado, seu mundo? Parecia que cada passo dado para frente, cada progresso proclamado, custava um pedaço da própria alma da floresta. Teotônio fechou os olhos, tentando bloquear a visão dolorosa. O rio, o pôr do sol, as flores dos ipês, tudo se apagava frente à fumaça que subia ao céu, disfarçando o azul com seu véu acinzentado.

Ele sentiu o coração pesado, carregando não apenas a saudade, mas agora a tristeza de uma tragédia que não era visível a olho nu, mas que era sentida em cada respiração. A tragédia de ver sua terra se afogando, não mais nas águas furiosas de uma cheia, mas na escuridão silenciosa da destruição, na ganância que transformava a vida em cinzas. Tudo fruto de um modelo de negócios que condenava todas as pessoas a viverem isso, enquanto enchia um os bolsos de dinheiros de alguns poucos.

Ali, no marco zero, onde tudo começara, Teotônio sentiu que estava diante de um fim. Não sabia o que faria, para onde iria, mas sabia que não podia ignorar o clamor abafado de sua terra, que ainda ecoava nos seus ouvidos, como o som longínquo de uma locomotiva que nunca se detém.


domingo, agosto 25, 2024

liberdade?

a burguesia, cotidianamente, promete

a liberdade em sua democracia

eu e tu, em nosso duro cotidiano

só pensamos em poder sobreviver

há liberdade quando nossa luta

é a cada dia buscar o nosso comer?

quarta-feira, agosto 14, 2024

Urbs Dystopia

No coração da floresta Amazônica, onde o verde outrora dominava, ergueu-se uma cidade que parecia saída dos pesadelos mais profundos. Old Port, como fora batizada, não surgiu por capricho da natureza ou por necessidade humana, mas como uma criatura moldada à força, forjada entre o fogo e o ferro. Os ventos que um dia carregaram o cheiro fresco da vegetação agora sopravam fumaça, e as águas dos rios, antes cristalinas, corriam como se carregassem a sombra do futuro sombrio da cidade.

Old Port não era um lugar onde o progresso tivesse qualquer relação com o bem-estar humano. Ali, o desenvolvimento era medido pelo brilho metálico das estruturas que dominavam o horizonte, pelo rugido constante das máquinas que nunca descansavam, e pelo crepitar do fogo que, assim como a cidade, parecia indomável. Para que Old Port existisse, povos antigos foram forçados a deixar suas terras sagradas, expulsos pela ambição dos homens que viam na floresta apenas um obstáculo a ser superado.

A cidade nasceu do fogo que queimava a floresta sem remorso, transformando árvores centenárias em cinzas e ferro. As chamas que devoravam a vegetação também moldavam o ferro bruto, que, em estado líquido, dava forma às estruturas maciças e sombrias que compunham a espinha dorsal de Old Port. O ferro era a carne da cidade, e o fogo, o seu sangue. A cada dia, a floresta recuava, e a cidade se expandia, consumindo tudo ao seu redor.

As pessoas que habitavam Old Port não eram como as de outros lugares. Atarracadas e de estatura reduzida, pareciam carregar no corpo o peso do ferro que sustentava a cidade. Não havia espaço para crescer em Old Port, nem física nem espiritualmente. As crianças nasciam pequenas e doentes, e os adultos envelheciam rapidamente, como se o próprio ar da cidade sugasse suas energias. Ninguém vivia além dos trinta anos, e a morte era uma presença constante, quase familiar, na vida dos habitantes.

O fogo, que queimava a floresta, também se tornara parte do cotidiano. Em Old Port, o lixo não era recolhido; ele era queimado nos quintais das casas, alimentando a atmosfera de fumaça espessa que nunca se dissipava. O saneamento básico era um conceito estranho à cidade, onde a água potável precisava ser fervida ou comprada a preços exorbitantes. Farmácias brotavam como ervas daninhas, uma para cada mil habitantes, vendendo remédios que ofereciam alívio temporário para os males crônicos que afligiam a população.

Ainda assim, o paradoxo da cidade era visível nas ruas. As pessoas, embora doentes e envelhecidas antes do tempo, dirigiam carros grandes e potentes, que pareciam desafiar a decadência que os cercava. Old Port era uma massa cinzenta de ferro e concreto, sempre envolta em uma névoa de fumaça, onde o verde da floresta era apenas uma lembrança distante.

No restante do país, Old Port era vista com medo e repulsa. Não apenas pela destruição que causava ao meio ambiente, mas pela ameaça que representava para outras cidades. A cidade não crescia em população, mas em extensão, espalhando-se como uma mancha escura pelo território. As pessoas temiam que os hábitos de Old Port se infiltrassem em suas próprias cidades, que o fogo e o ferro se tornassem suas realidades.

Old Port era uma ferida que nunca curava, uma cidade que, em vez de crescer e florescer, apenas se espalhava como um câncer, devorando tudo em seu caminho. E, enquanto o fogo queimava e o ferro dominava, a cidade continuava a se expandir, levando consigo a escuridão que assustava até mesmo aqueles que nunca a tinham visto. O medo da conurbação se espalhava pelo país, e Old Port, como uma entidade viva e faminta, avançava lenta e inexoravelmente, ameaçando transformar toda a nação em um reflexo distorcido de si mesma.

sexta-feira, agosto 09, 2024

O inferno da razão

 

A Cidade das Engrenagens

No século XIX, quando o mundo se expandia rapidamente na Revolução Industrial, uma cidade se erguia entre as névoas das máquinas e o vapor das fábricas. Essa cidade, que se estendia em um cenário de ar futurista, era conhecida como Mecania. Com suas torres metálicas alcançando os céus e suas ruas pavimentadas de ferro e vidro, Mecania parecia a personificação de um progresso irrefreável, mas escondia em seu ventre uma ordem social rígida e cruel, semelhante aos círculos descritos por Dante Alighieri em sua Divina Comédia.

O Paraíso dos Empresários

No alto das torres mais reluzentes, acima das nuvens de fuligem, viviam os Empresários. Estes homens e mulheres, envoltos em luxos inimagináveis, governavam a cidade com punhos de aço. Seus palácios eram feitos de cristal e ouro, reluzindo sob a luz artificial que banhava o Paraíso. Aqui, tudo era abundância: banquetes, prazeres e um conforto que o resto da cidade apenas sonhava. A propaganda incessante que circulava entre os canais da cidade exaltava esses Empresários como os guardiões do progresso, aqueles que moviam as engrenagens da civilização. No entanto, eles viviam isolados, separados do resto do mundo, como deuses intocáveis.

O Purgatório dos Gerentes

Abaixo do Paraíso, nas camadas intermediárias da cidade, habitava a classe média: os Gerentes. Eles viviam em apartamentos modernos, organizados em fileiras perfeitas, sem luxo, mas com tudo o que era necessário para uma vida estável. No Purgatório, a ordem e a eficiência eram a regra. Cada movimento era cronometrado, cada atividade racionalizada. Pequenos problemas e contratempos surgiam ocasionalmente, mas nada comparado aos horrores dos níveis inferiores. Os Gerentes acreditavam na promessa de que, com trabalho duro e dedicação, poderiam ascender ao Paraíso, mas poucos conseguiam, e aqueles que falhavam eram relegados às camadas inferiores.

O Inferno dos Trabalhadores

Nos subúrbios sombrios e opressivos da cidade, onde a luz do sol nunca alcançava, vivia a massa trabalhadora. Eles eram a base da pirâmide, os que mantinham as máquinas de Mecania funcionando dia e noite. Aqui, o Inferno era uma realidade diária. As ruas eram labirintos de metal corroído, e as habitações não passavam de cubículos amontoados, onde mal cabia uma pessoa. O ar era pesado, impregnado de fumaça e óleo, e o som constante das máquinas era ensurdecedor. Trabalhadores se moviam como autômatos, suas vidas completamente controladas pelo relógio. A propaganda que lhes era imposta, incessantemente, exaltava o valor do trabalho, a honra de servir à cidade, mas, na verdade, eles sabiam que eram apenas engrenagens descartáveis.

A Propaganda da Racionalização

Em toda Mecania, a propaganda era uma presença constante, penetrando nas mentes dos habitantes como uma melodia hipnótica. “Trabalhe com honra, viva com razão” dizia um dos slogans mais repetidos. A racionalização das atividades era o mantra da cidade; nada era feito sem um propósito claro e utilitário. O tempo de lazer, o sono, até mesmo as interações sociais eram medidas e otimizadas. Os Trabalhadores eram doutrinados a acreditar que seu sofrimento era necessário, que sua dedicação sustentava a grandeza de Mecania. Entretanto, poucos percebiam que essa racionalidade imposta era, na verdade, a própria fonte de seu tormento.

O Despertar

Entre os Trabalhadores, no entanto, começava a surgir uma semente de insurreição. Enquanto as máquinas continuavam a ranger, e a cidade se movia no ritmo mecânico de sua rotina implacável, um pequeno grupo começou a questionar o status quo. Eles se encontravam em segredo, nos recessos mais profundos da cidade, onde nem mesmo as câmeras de vigilância chegavam. Esses rebeldes sussurravam sobre a possibilidade de outra vida, de uma cidade sem círculos, onde todos pudessem viver como iguais.

Ao mesmo tempo, nos andares do Purgatório, alguns Gerentes começaram a se dar conta da futilidade de suas aspirações. Quanto mais se esforçavam para subir, mais se afundavam na espiral de exigências intermináveis. Alguns começaram a olhar para baixo, para o Inferno dos Trabalhadores, e a questionar se realmente valia a pena seguir a rota traçada para o Paraíso.

E, no topo das torres, nos palácios de cristal e ouro, a calmaria começava a se romper. As disputas internas pelo poder se intensificavam, e o medo de uma rebelião das massas começava a se insinuar nos salões onde, até então, só havia lugar para o prazer.

A Revolução das Engrenagens

O que se seguiu foi um choque de mundos. Trabalhadores e Gerentes, em uma aliança improvável, começaram a sabotar as máquinas que moviam Mecania. Greves, incêndios e rebeliões eclodiram por toda a cidade. O Inferno se inflamava, e seu calor subia, atingindo o Purgatório e, finalmente, ameaçando os alicerces do Paraíso.

Os Empresários, desesperados, tentaram usar toda a força de seu poder para conter a revolta, mas descobriram que suas engrenagens, sem o trabalho das massas, não giravam mais. O sonho racional de Mecania começava a ruir, peça por peça.

Um Novo Horizonte

Depois de meses de conflito, Mecania estava irreconhecível. As torres desabaram, as ruas foram tomadas pelos rebeldes, e o céu, antes poluído pelo vapor, começou a clarear. O velho mundo havia sido destruído, mas a promessa de um novo surgia no horizonte. Sem a tirania da racionalização extrema, os sobreviventes começaram a construir algo novo, uma cidade onde cada um pudesse encontrar seu lugar, não por imposição da força, mas por direito humano.

O futuro, embora incerto, parecia brilhar com uma luz que Mecania nunca conhecera até então.

quinta-feira, julho 04, 2024

Além do brejo

Era uma vez, num brejo verdejante e cheio de vida, um sapo chamado Telmo. Telmo não era um sapo comum. Desde pequeno, ele tinha uma curiosidade insaciável que o diferenciava dos outros sapos do brejo. Enquanto seus irmãos e irmãs se contentavam em saltitar entre as folhas e nadar nos charcos, Telmo sempre olhava além, para a borda do brejo, imaginando o que poderia haver do outro lado.

Sua mãe, uma sapa sábia e prudente, sempre o advertia: "Telmo, meu filho, o brejo é nosso lar. Fora daqui há perigos que você não conhece. Aqui estamos seguros." Mas Telmo não se conformava. Ele sonhava com vastos campos, florestas densas e criaturas misteriosas que só existiam em suas imaginações.

Os anos passaram e Telmo cresceu. Sua curiosidade, em vez de diminuir, apenas aumentava. Quando atingiu a juventude, decidiu que era hora de descobrir o que havia além do brejo. Numa noite silenciosa, enquanto todos dormiam, ele se despediu silenciosamente de sua família e partiu em sua grande aventura.

Telmo saltou por campos de flores, atravessou riachos e escalou colinas. Viu coisas que jamais imaginara: borboletas coloridas, riachos cristalinos e árvores tão altas que pareciam tocar o céu. Encontrou outros animais e aprendeu com eles sobre o mundo além do brejo. Cada nova descoberta enchendo seu coração de alegria e fascínio.

Após muitas aventuras e aprendizados, Telmo sentiu uma saudade imensa de casa. Ele sabia que precisava retornar ao brejo e compartilhar tudo o que havia descoberto. Imaginava a felicidade de sua mãe ao ouvir suas histórias e a excitação de seus irmãos ao aprender sobre o mundo além do brejo.

Quando finalmente voltou, o brejo parecia exatamente o mesmo, mas Telmo havia mudado. Ele correu para encontrar sua família e amigos, ansioso para contar tudo o que havia visto. "Mãe, irmãos, vocês não acreditariam nas coisas incríveis que existem além do brejo!", exclamou ele, com os olhos brilhando de emoção.

Mas, para sua surpresa, sua família não reagiu como ele esperava. Sua mãe o olhou com preocupação e seus irmãos riram, achando que Telmo estava inventando histórias. "Telmo, você está delirando", disse sua mãe. "Você deve ter comido algum inseto estranho que te fez ver coisas. O brejo é tudo o que existe e sempre será."

Telmo tentou argumentar, contar sobre as borboletas e as árvores gigantes, mas ninguém acreditava nele. Os outros sapos começaram a evitá-lo, cochichando que ele havia perdido a sanidade. Telmo, agora sozinho e incompreendido, percebeu que, embora tivesse encontrado a verdade sobre o mundo além do brejo, sua família e amigos preferiam a segurança do conhecido à incerteza do desconhecido.

Assim, Telmo viveu o resto de seus dias no brejo, carregando consigo o conhecimento do vasto mundo além. Ele continuava a observar a borda do brejo, esperando que um dia, algum outro sapo curioso decidisse seguir seus passos e descobrir as maravilhas que ele havia visto. E talvez, apenas talvez, aquele sapo conseguiria convencer os outros de que havia vida além do brejo. 

quinta-feira, junho 13, 2024

Outra vida


Chegamos a Rondônia num tempo em que a terra ainda era um desbravamento selvagem. Eu me lembro como se fosse ontem. A estrada era de terra batida, serpenteando pela floresta densa e implacável. O ônibus chacoalhava tanto que, a cada quilômetro, eu sentia como se minha espinha fosse se partir. Saímos às seis horas da manhã, e a luz do sol mal tinha despontado no horizonte. O trajeto era uma provação, levando até o anoitecer para finalmente avistarmos as luzes esparsas da cidade.

Naquele dia específico, a tensão era palpável. Em uma das paradas forçadas pelo atolamento do ônibus, fomos abordados pela polícia. Todos no grupo ficaram apreensivos, mas ninguém tanto quanto o João, um camarada robusto e de poucas palavras que tinha se juntado a nós na última cidade. Ele não tinha documento e sabia que qualquer problema com a polícia poderia significar um desvio inesperado e perigoso para seu destino. Com os policiais se aproximando, João se esgueirou para fora do ônibus e se escondeu no mato espesso. Nós seguramos a respiração, esperando que ninguém notasse sua ausência. Felizmente, a inspeção foi rápida e superficial. Assim que os policiais se afastaram, João retornou, suado e com o coração a mil, mas aliviado.

A viagem prosseguiu por aquele mar de árvores e lama. A paisagem era de uma beleza brutal e implacável. Mata para todo lado, uma extensão interminável de verde que parecia engolir tudo. Malária era um fantasma sempre presente, rondando-nos. Víamos gente adoecer e sucumbir à doença quase diariamente. A morte fazia parte do cotidiano, tornando cada novo amanhecer uma vitória.

No meio dessa vastidão, a vida se resumia ao essencial. Nossa comida era arroz, feijão e o que a mata pudesse nos oferecer. Aprendemos a caçar e a pescar, comíamos carne de tatu, de veado, às vezes um porco do mato. Era uma vida dura, mas havia uma estranha sensação de liberdade naqueles dias. Estávamos na fronteira do desconhecido, forjando nosso caminho com coragem e determinação.

Cada viagem à cidade era uma expedição arriscada, marcada pela incerteza do que poderíamos encontrar pelo caminho. Mas havia também uma camaradagem, uma solidariedade entre nós, novos moradores, que fazia com que cada obstáculo fosse um pouco mais fácil de enfrentar. Rondônia era uma terra de desafios, mas também de oportunidades, e nós estávamos ali para enfrentá-los, custasse o que custasse.

quarta-feira, junho 12, 2024

Seringal

 

Na densa floresta amazônica, um homem de passos silenciosos e olhar distante chegou ao seringal. Seu nome era Joaquim, um homem de pele curtida pelo sol e mãos calejadas pelo trabalho. Viera de longe, carregando consigo um passado que preferia deixar nas brumas do tempo. “Pra quê lembrar agruras?”

O seringal era um lugar vibrante, onde os seringueiros e suas famílias lutavam diariamente contra a natureza bruta para extrair o leite das seringueiras, fonte de sua subsistência. Entre eles, destacava-se Maria, uma mulher forte e determinada que, após a morte do marido, assumira sozinha a responsabilidade de sustentar seus filhos.

Maria e Joaquim se conheceram por acaso, quando ele se perdeu no labirinto verde da floresta. Ela o encontrou desorientado e o levou para sua casa. A partir desse encontro fortuito, uma amizade floresceu, dando origem a um amor inesperado.

Pouco tempo depois, Joaquim e Maria se juntaram. A dinâmica que se estabeleceu entre eles era diferente de qualquer outra vista no seringal. Maria continuou saindo todos os dias para extrair o leite das seringueiras, enquanto Joaquim assumiu as tarefas domésticas. Ele cuidava da casa, preparava as refeições, zelava por tudo com dedicação e carinho.

Essa inversão de papéis gerou murmúrios e olhares curiosos entre os vizinhos. No entanto, Joaquim não se deixava abalar. Com o tempo, ele encontrou uma maneira de ganhar o respeito e a admiração da comunidade. Tendo recebido uma educação básica, Joaquim começou a ensinar as crianças do seringal a lerem e escreverem. Ele se sentava com elas à sombra das árvores, desenhando letras na terra e ensinando-lhes o poder das palavras.

As crianças, fascinadas, logo começaram a aprender e a mostrar os primeiros sinais de progresso. A notícia se espalhou rapidamente, e em pouco tempo, Joaquim passou a ser conhecido não apenas como o homem que cuidava da casa, mas como o mestre das letras daquele seringal.

O estranhamento inicial da vizinhança deu lugar a um profundo respeito. O seringal inteiro reconhecia a importância do que Joaquim estava fazendo. Ele e Maria, com sua parceria singular e complementar, se tornaram um exemplo de que o amor e a colaboração podiam superar quaisquer barreiras criadas socialmente.

Naquela comunidade isolada, Joaquim e Maria construíram um novo caminho, mostrando que se as tradições são inventadas, elas podiam ser reinventadas e aplicadas na simplicidade do cotidiano, onde, de fato, está a força para transformar vidas.

quarta-feira, junho 05, 2024

Domus

          Era uma vez, no reino de Asteria, um garoto chamado Domus. Desde cedo, ele conheceu a frieza do mundo, pois sua infância foi marcada pela ausência de amor. Seus pais, ambos guerreiros destemidos, estavam sempre ausentes, lutando batalhas distantes e buscando glórias que jamais pareceriam tocar o coração de Domus.

Sem carinho e orientação, Domus cresceu isolado, encontrando consolo apenas na natureza ao seu redor. No bosque atrás de sua casa, havia uma árvore majestosa que ele chamava de Velha Sábia. Era uma figueira robusta com galhos que se estendiam como braços acolhedores, oferecendo sombra fresca e um refúgio seguro. Naqueles dias solitários, Domus passava horas brincando à sua sombra, escalando seus ramos e construindo uma pequena casa de madeira em seu tronco. Lá, ele se sentia compreendido e protegido, como se a árvore fosse sua verdadeira família.

Com o tempo, a vida o afastou de sua infância e das poucas alegrias que conhecera. Os anos passaram e o coração de Domus endureceu. Ele se tornou um homem amargo, carregando um ódio profundo por tudo e todos. Seu olhar era uma chama de fúria contida, e muitos diziam que, ao se sentir afrontado, seus olhos pareciam incendiar de ódio. Sua raiva se transformou em uma arma poderosa, que ele usava para se vingar daqueles que cruzavam seu caminho.

Em uma noite tempestuosa, enquanto o trovão ecoava pelas montanhas e a chuva caía pesadamente, Domus foi atraído por uma força invisível de volta ao bosque de sua infância. Seus pés, guiados por uma memória distante, o levaram até a Velha Sábia. Ao vê-la novamente, mesmo desgastada pelo tempo, ainda se erguendo imponente contra a fúria da tempestade, algo dentro dele começou a se quebrar.

Ele caminhou lentamente até a árvore e colocou a mão em seu tronco áspero. Instantaneamente, uma onda de lembranças o inundou. Viu-se novamente menino, rindo e brincando, sem as preocupações que agora pesavam sobre seus ombros. Sentiu a alegria pura e o amor silencioso que a Velha Sábia lhe oferecera.

Domus caiu de joelhos, as lágrimas se misturando com a chuva em seu rosto. A árvore parecia sussurrar segredos antigos, curando as feridas profundas de seu coração. Sentado ali, sob a copa acolhedora da Velha Sábia, ele permitiu que o ódio fosse lavado de sua alma. Aos poucos, a fúria em seus olhos se dissipou, substituída por uma serenidade que ele há muito desconhecia.

A transformação de Domus foi profunda e verdadeira. Ele passou a cuidar da Velha Sábia, protegendo-a dos perigos da floresta e restaurando sua antiga casa na árvore. Tornou-se um guardião da natureza, encontrando propósito em proteger e preservar a beleza ao seu redor.

O reino de Asteria viu uma mudança notável em Domus. De um homem temido e odiado, ele se tornou um símbolo de redenção e esperança. Seu olhar, outrora flamejante de ódio, agora brilhava com um amor tranquilo e profundo. E assim, a Velha Sábia não só salvou Domus de sua própria escuridão, mas também trouxe luz e paz para toda a terra de Asteria.

E assim termina a história de Domus, o homem que encontrou a redenção e o amor sob os galhos acolhedores da Velha Sábia. Uma prova de que, mesmo nos corações mais endurecidos, a semente do amor pode florescer novamente.

terça-feira, junho 04, 2024

O navio

       O capitão Jonas Santos era um homem experiente, conhecido por sua firmeza e sabedoria no comando de navios. Seu mais recente desafio era o "Estrela do Atlântico", um imponente navio de luxo que cruzava o oceano, levando passageiros da Europa para a América. A bordo, havia uma clara divisão de classes: a opulenta primeira classe, a confortável segunda classe e a humilde terceira classe.

Naquela noite, enquanto o navio deslizava sob um céu estrelado, o capitão Santos recebeu uma notícia alarmante: uma das caldeiras apresentava uma avaria séria, reduzindo drasticamente a velocidade do navio. Para piorar, o combustível estava acabando rapidamente devido ao esforço extra necessário para manter o curso.

Reunido com seus oficiais, Santos explicou a situação. Eles estavam a dias do porto mais próximo, e a única solução viável seria aliviar o peso do navio. Foi então que uma verdade desconcertante veio à tona: a primeira classe estava abarrotada de bagagens extravagantes e desnecessárias. Objetos de luxo, móveis, até mesmo automóveis, estavam armazenados nos compartimentos destinados aos passageiros mais ricos.

A decisão agora recaía sobre os ombros do capitão. Convocou uma reunião com os representantes das três classes para discutir o dilema. Na sala de reuniões, a tensão era palpável. Os passageiros da primeira classe, vestidos com roupas elegantes, sentaram-se com expressões de desdém. Os da segunda e terceira classe, muitos dos quais trabalhadores e imigrantes buscando uma nova vida, esperavam ansiosamente pela decisão.

— Senhoras e senhores — começou o capitão Santos, sua voz grave cortando o silêncio — estamos enfrentando uma crise que ameaça nossa chegada segura ao destino. Temos que aliviar o peso do navio para poupar combustível e evitar uma tragédia. A primeira classe, com todo o respeito, está carregando uma quantidade exorbitante de bagagens que podem ser dispensadas. Temos duas ações: precisamos descartar os excessos e dividir os recursos de maneira equitativa entre todos os passageiros para garantir que tenhamos o suficiente para a viagem.

Os protestos começaram imediatamente entre os passageiros da primeira classe. Uma senhora de idade avançada, adornada com joias reluzentes, levantou-se indignada.

— Isso é um ultraje! Pagamos uma fortuna para ter nossos bens transportados com segurança! Não aceitamos dividir nossos pertences!

Do outro lado da sala, um homem robusto, com mãos calejadas e vestes simples, levantou-se em defesa dos menos privilegiados.

— Não é justo que alguns de nós tenham que sofrer enquanto outros mantêm seus luxos. Estamos todos no mesmo barco, literalmente. Se não ajudarmos uns aos outros agora, todos nós poderemos não chegar ao destino.

O capitão Santos observava atentamente as reações. Precisava encontrar um equilíbrio que garantisse a segurança de todos. Decidiu devolver a responsabilidade para todos, no seu entendimento parecia complicado apelar para o senso de humanidade e justiça dos passageiros da primeira classe.

— Entendo suas preocupações — disse ele, olhando diretamente para os passageiros da primeira classe. — Peço que vocês se reúnam com seus grupos e decidam o melhor a ser feito, enquanto isso vou tomando outras providências. Mas a decisão final será de vocês. Por ora, proponho que descartemos apenas os itens mais volumosos e pesados que realmente não são essenciais. É preciso decidirem acerca das provisões para que todos tenham o necessário para o restante da viagem, que será longa e árdua.

Cada grupo se reuniu e realizaram debates. A segunda classe estava confortável e não tinha muito o que perder, talvez no máximo um pouco menos de provisão. Quanto aos ricos, chegaram à conclusão que eram uma pequena minoria e que se a terceira e segunda classe juntassem poderiam até mesmo jogá-los ao mar. Os seguranças à sua disposição talvez não fossem suficientes para deter uma rebelião da terceira classe, esmagadora maioria naquela viagem. Quanto ao que era desnecessário, sob a supervisão da tripulação, as bagagens excessivas da primeira classe foram cuidadosamente selecionadas e descartadas ao mar.

Por caminhos distintos, rapidamente a terceira classe chegou ao mesmo resultado da primeira: não havia nada, absolutamente nada a perder, logo se a primeira classe não concordassem, era preciso tomar o navio. Algumas vidas seriam perdidas, porém, “melhor algumas do que todas”, sugeriu uma das lideranças criadas naquele momento de agrura e decisão. Ao mesmo tempo, as provisões foram redistribuídas, garantindo que todos a bordo tivessem comida e água suficientes.

Nos dias seguintes, a atmosfera a bordo mudou. Invés de solidariedade, tensão, os abastados cediam por pressão, não por vontade. A segunda classe dividia em apoio à primeira classe e em solidariedade a terceira. A primeira classe, sempre relutante com as tarefas a ela destinada, começou a arquitetar maneiras acabar com a cooperação reinante. O navio prosseguia sua jornada com mais eficiência, mas ainda tardaria a chegar a seu destino. Havia ainda muito mar por navegar.

Vozes dentro da terceira classe começaram a alertar sobre o perigo daquela aliança, que poderia não durar. Era preciso controlar tudo, afinal a distribuição dos mantimentos continuava a ser realizada pela tripulação, quem garantia que os privilégios não se mantinham para a primeira classe? Embora poucos, ainda tinham maneiras de subornar muitas pessoas.

O "Estrela do Atlântico" seguia viagem, sem possibilidades de resgate, entregue à sua sorte e as decisões de seus passageiros, que finalmente entenderam o que significa realmente estar "no mesmo barco".  Talvez nem todos, pois se havia conspiração no alto, isto é, na primeira classe, havia conjuração na terceira, com alguns aliados da segunda classe. Uma certeza permanecia para todos: a maioria estava na classe mais baixa. Teriam a coragem de tomar totalmente o navio e lhe dá o rumo adequado? A decisão era humana, enquanto a grande máquina seguia seu curso e sua avaria crescia.