Pesquisar este blog

quinta-feira, dezembro 21, 2023

hevea brasiliensis homo nordestinus

no caminho da fortuna, lançado
do nordeste para a floresta
a bordo de um gaiola
encara seu destino
na busca de leite em árvore

chegado ao barracão
recebe um boião de furo
uma bacia
mil tigelinhas
uma machadinha
e um machado
um terçado
uma carabina
e duzentas balas
dois pratos
duas colheres
duas xícaras
e um agulheiro
nada mais
nada mais!

ainda é um brabo
se sobreviver
tornar-se-á manso

primeiro rancho:
três paneiros de farinha d`água
um saco de feijão
um pouco de sal
vinte quilos de arroz
trinta de charque
café e açúcar
seis latas de banha
oito libras de fumo
vinte gramas de quinino
quinino, vinte gramas apenas
e uma dívida impagável

servidão infernal
o preço de um homem
em um seringal

domingo, outubro 15, 2023

regue-se

somos  setenta por cento água

os outros trinta, amor

mantenha o equilíbrio

não se transmute em dor


não pode haver aumento 

e nem diminuição

cultive, regue-se, 

não altere sua composição


o tempo todo

pessoas querem lhe modificar

mas somos feitos de água e amor

não se deixe alterar


regue, regue seu coração

não altere sua composição

sábado, setembro 16, 2023

el niño

o calor escaldante
desse setembro amazônico
em uma cidade de poucas árvores
denuncia o (d)efeito ser-humano
sobre a natureza
agravado pelo el niño

o semáforo no vermelho
os carros, com seu vidros fechados
param
dentro, ares-condicionados ligados
fora
a criança, só
(com o que lhe restou de infância)
brinca
esquece de estender a mão aos motoristas
e chuta uma pedrinha para o gol imaginário
seus pés descalços parecem imunes
à escaldante calçada

o verde desflorestado
acende
os carros seguem
guiados por seus anestesiados

quarta-feira, agosto 16, 2023

roubada*

o mundo não tem mesmo jeito
olha só a cara desse sujeito
primeiro roubou a mulher
sem pudor, com determinação
e ainda voltou pra roubar seu coração

não que ela tenha dado bandeira
o cara é que tem mão ligeira
tem traquejo e muita lábia
foi se cercando e jogando seu laço
quando se viu, os dois no amasso

essa vida não é brincadeira
cuidado moça, seja ligeira
marque a cara desse sujeito
ele não está pra brincadeira



*Após assistir ao vídeo em que um casal narra a aventura aqui descrita

segunda-feira, agosto 14, 2023

vai

vai, vai sim, pode ir
me deixa curtir essa dor
a cigana já te disse
onde quer que vá
não lhe faltará amor

me deixa largado
feito cão sem dono
vai curtir sua vida
e eu, o abandono

aqui, todos sabem
você não é anjo
teu corpo provoca
em qualquer lugar
você se arranha

fiz o que pude pra te segurar
teu corpo precisa de outros
por isso, vais me largar

domingo, agosto 13, 2023

segunda-feira, julho 24, 2023

ente

res

     pira

            profunda

                           mente

pau

       la

            tin[h]a

                       mente

des

      trava

               a

                  mente

doi

     diva

            na

                 mente

sábado, julho 01, 2023

Praça do choro

Aqueles últimos meses vinha sendo um inferno para Joaquim: a perda de um amigo, fim de um relacionamento e desentendimentos no trabalho. Tudo era triste e sem sentido. Mas havia chegado as férias, que, se lá atrás havia sido muito esperada e representava alegria, agora era mais um compromisso. Afinal não deixaria de ir, pois ficou dez meses pagando a passagem aérea, o hotel já estava reservado e teve que depositar cinquenta por cento das diárias. Inicialmente seria as férias do casal, agora iria sozinho, por isso era só mais um compromisso, pra não perder o valor investido, mas talvez fosse mais um acúmulo de tristeza.

E Joaquim se foi. A todo momento se perguntando por que havia escolhido como destino o interior do Brasil invés de uma cidade com praia ou mesmo uma capital, onde pelo menos poderia ter certeza das festas e bebedeiras. No final pensou: "Pelo menos bebidas se encontra em qualquer lugar".  Chegou ao destino e um pequeno carro veio buscá-lo para a cidadezinha onde ficaria seus 15 dias de férias. Ao ver o carro, arrependeu-se de ter vindo. Aquilo faria sentido se viesse com Lúcia, afinal tinham combinado que queriam ficar longe de tudo e de todos, meio que isolados... "mas agora, qual o sentido disso".

O motorista sorridente lhe perguntou: "Senhor Joaquim Flores?" Chacoalhou a cabeça  afirmativamente. O rapaz quis pegar sua mala, mas ele mesmo a colocou no carro. "Pronto para a viagem?" Apenas pensou: "Mais uma?" Se questionava mais uma vez qual o sentido daquilo tudo. Lembrou de Lúcia, depois do amigo que perdeu em um acidente, do inferno que vinha sendo o seu trabalho e do quão ruim seriam aqueles quinze dias naquele fim de mundo.

Durante o trajeto de pouco mais de duas horas o motorista tentou puxar assunto sempre com um sorriso, mas a resposta era sempre monossilábica ou apenas um meneio de cabeça ou ainda um olhar enviesado. Joaquim queria sumir dentro de si. Chegou ao destino, mais sorrisos de recepção - "Talvez eu seja o único hóspede" -, preenchimento de ficha e o quarto. Se quer tomou banho, pois estava tomado de um cansaço existencial, mas todas as preocupações fez com que rolasse na cama quase a noite toda. Quando o dia estava amanhecendo o cansaço venceu e conseguiu dormir. 

Acordou já tarde. Perdeu o horário do café, mesmo assim a recepcionista perguntou se queria que montasse uma mesa para ele. Pediu apenas um café. Engoliu rapidamente e saiu sem destino. Estranhou os olhares e meneios de cabeças que o cumprimentavam. Havia esquecido de como são as cidades pequenas. Queria sumir da vista de todos. Queria esquecer Lúcia e ao mesmo tempo saber o por que deu errado em sua relação... não queria voltar mais pro trabalho. Reclamava para si: "Toda a minha vida é uma merda!"

Parou de repente. Algumas poucas pessoas cruzavam por ele sem entender. Uma senhora parou à sua frente e disse que deveria ir até a praça ali próximo, lá tinha lugar para sentar. "Se vê que o moço precisa". Ele não respondeu e pouco entendeu o que a mulher falava, mas conseguiu visualizar seus gestos indicando a direção de algo que ele não sabia o que era, mas como autómato obedeceu e seguiu na direção indicada.

Era uma praça pequena e bonita. Havia uma fonte no meio; em um dos lados havia uma pedra grande e escura. Havia duas pessoas encostadas nela e chorando. Do outro lado, pessoas conversavam sentadas. Uma imagem surreal a seus olhos. As pessoas que conversavam do outro lado, a seus olhos, ignoravam as que choravam à sua frente. Joaquim não sabia o que fazer, tudo pululava em sua cabeça: Lúcia, trabalho, o amigo, a vida e aquele lugar.

Uma pessoa se aproximou. "Vejo que o moço não é daqui. Vejo também que está precisado de chorar. Olha, se quiser, é só encostar naquela pedra. Ela tá lá pra isso" e sorriu. "Depois, se quiser conversar ou só ter uma companhia, ali do outro lado, qualquer banco, é só sentar". Joaquim não conseguia agradecer, gesticular, nada. O verbo chorar, no entanto, em seus ouvidos foi uma senha esperada e uma espécie de última alfinetada em carne machucada. Tanta dor não cabia mais dentro de si. Cambaleou até a pedra, encostou e chorou efusivamente, desengarrafando um comboio de sentimentos guardados. Chegou mesmo a deitar-se no chão, sem medo e sem nenhuma vergonha, ninguém o reprimiu com palavras ou olhares. 

Após muito tempo, o rosto lavado por lágrimas, com pequenos soluços que iam aos poucos desaparecendo, ganhou coragem e atravessou a praça, sentando-se em um banco. Um moço sentou a seu lado, pegou sua mão e afirmou olhando generosamente em seus olhos: "Caso queira conversar, estou aqui. Se não, podemos apenas ficar aqui sentados, com a certeza de que pode contar comigo nesse momento". Joaquim nada falou, mas a certeza da presença daquele corpo afetuoso seu lado o encheu de nova vida. Permaneceu ali por bastante tempo, quando agradeceu com a cabeça e levantou. Voltou no outro dia e dessa veza, além de chorar, conseguiu falar.

terça-feira, maio 23, 2023

em pedaços

vai, vai sim, pode ir
me deixa curtir essa dor
enquanto tu ri
a cigana já te disse
onde quer que você vá
não lhe faltará amor

me deixa largado
feito cão sem dono
vai curtir tua vida
e eu, no abandono

aqui todos sabem
você não é anjo
teu corpo provoca
quem olha gama
assim, em qualquer lugar
você se arranja

fiz o que pude pra te segurar
mas teu corpo precisa de outros
por isso vais me largar

quarta-feira, maio 03, 2023

descontrole

vem, vem depressa
com teu jeito sapeca
faz do meu corpo tua festa

me socorre, amor
meu peito raso
quer afogar-se em ti
não faz pouco caso

mergulhar em teus beijos
nesses lábios melancia
carne trêmula em descontrole
num desmaio de alegria

vem, vem depressa
com teu jeito sapeca
faz do meu corpo tua festa

quarta-feira, abril 12, 2023

fé na luta

o país chamado Brasil
foi e é máquina de moer gente
alertou o sábio Darcy
é preciso fé na luta
pra mudar isso daqui

uma elite perversa
que quer nos fazer desistir
mas vamos nos aquilombar
pois é preciso resistir
cada pedaço aldear
para descolonizar

com a força das malocas e terreiros
fazer um Brasil para os brasileiros

sexta-feira, janeiro 20, 2023

A procura

Abriu os olhos com certa dificuldade diante da luz do sol que acariciava seu rosto. O corpo estava encostado a uma parede junto a uma grande lixeira. O cheiro denunciava o ambiente e muito mais. Olhou seus pés, havia apenas um sapato. Ao subir o olhar, o vômito em sua camisa e parte da calça, fez com que virasse o rosto. Começou a se perguntar que lugar era aquele e como veio parar ali. Tudo era estranho. Levantou-se com dificuldade, deu alguns passos para poder olhar ao redor, mancou devido a diferença entre as pernas, apenas um pé calçado. Do outro lado da rua passou um senhor olhando-o com desprezo. Continuava a se perguntar que lugar era aquele. Precisava ir embora, mas pra onde?

Voltou para próximo da lixeira para ver se era os fundos de um bar ou restaurante. A placa indicou tratar-se de um bar, porém estava fechado. Avistou uma torneira e foi até ela para jogar um pouco de água na cara; jogou água na roupa para tentar tirar o excesso do vômito e do cheiro. Avistou, próximo dali, um posto de gasolina. Se encaminhou até lá. Quando passava alguém por ele, parecia ver um cachorro sarnento. Ainda não conseguia lembrar como chegou até ali, muito menos que lugar era aquele.

Chegou ao posto de combustível e pediu para usar o banheiro. Com desprezo o frentista indicou a direção com a recomendação de não emporcalhar o ambiente. Urinou. Lavou as mãos e o rosto. Aproveitou para olhar-se no pequeno espelho. Afastou-se. Não sabia quem era a figura refletida. Tornou a olhar. Um certo desespero começou a brotar. "Que porra de lugar era aquele? Como veio parar ali? Quem era a figura no espelho?" Sua cabeça, além de doer, girava. Começou a buscar algum momento em sua memória, para tentar identificar quem era, de onde vinha. Só aparecia em sua mente uma ladeira e a descida atabalhoada de um corpo infantil que caía lá embaixo. "O que diabos isso significa?", se perguntava. Nada. Só o vazio e a dor.

Tirou o único sapato e começou a caminhar completamente descalço. Vestido em roupas nojentas e habitando um corpo desconhecido. Começou a caminhar e a cada pessoa que cruzava, começou a perguntar se lhe conheciam. As pessoas se afastavam sem responder. O desespero crescia. Começou a correr e a gritar: "Quem sou eu? Quem sou eu?" Tropeçou e caiu, partindo-se em pedaços tão miúdos, que era impossível juntá-los. Tudo era dilaceração, silêncio e escuridão.  

quinta-feira, janeiro 19, 2023

Só mais 72 horas

O mundo está pelo avesso: corruptos, drogados e degenerados mandando no país. "Será que ninguém mais vê?" Berrava pra si mesmo. Ele que não permitiria isso. Por isso tem feito o que tem feito e continuará a fazer. Por isso se mantém bem informado e pedindo ajuda externa ao rezar para pneus - "Deus age por muitas formas!" - e acedendo luzes de celular juntos com mais pessoas conscientes, chamando atenção de extraterrestres. É certo que alguém os socorrerá e o país voltará aos trilhos. "Só mais 72 horas".

Entretanto, sua cabeça começou a relembrar e a lamentar: "Como não conseguiram nada, após meses em frente as forças morais deste país?" se perguntava, sem resposta. Lembrou que agora vivia sozinho e pensava em reprogramar seu rumo, pois após tanta batalha, voltou pra casa e não encontrou mais mulher e filhos. Estaria louco? "Será que devo procurar ajuda de um profissional? Um psicanalista, talvez?" Lembrou-se que havia lido em algum lugar, não lembrava onde, que Freud era um degenerado. Então "essa gente não é confiável".

Consultou o celular para saber informações de seu herói, mas tudo era silêncio. Sua cabeça girava sem saber quem poderia lhe socorrer. O país entrava em parafuso e ele não podia desistir. Por onde andaria sua esposa, seu esteio em momentos tão difíceis? "Por que ela se foi, se estou do lado certo?" Armado de suas cores preferidas foi ao encontro dos seus, "Uma gente branca e honesta, que só quer o bem de nossas famílias e da pátria. É preciso lutar." Ao chegar ao local combinado, soube que em 72 horas tudo se resolveria. "A vitória virá." Todos lhe dariam razão, sua esposa voltaria e pediria perdão, abraçaria seus filhos e contaria a história dessa luta para que não esquecessem. Só mais 72 horas."

terça-feira, janeiro 03, 2023

sampa

quarenta dias no deserto paulistano

rever amigos, familiares

alimentar a fé nos laços

juntar forças para ver meu país voltar pro eixo


não haverá jejum

as festas de fim de ano pedem o pecado da comilança

(o difícil é saber que milhões de irmãs e irmãos

caminhem no deserto da fome)

a força ainda está em reconhecer nossa fraqueza humana

ser empático, ajudar sempre que possível

e todos os dias lutar, lutar pela real mudança

por um mundo onde não haja fome

conforme a palavra, somos irmãos e irmãs

nossa força está por vir, na construção da igualdade na diversidade


há tantas fomes para serem supridas

é preciso haver pão e arte

alimentar corpo e espírito

de todos os seres, em toda parte


poder e glória da grana, cidade esfinge

aproveitar tuas belezas

sem perder-se em teus enigmas

não seduzir-se por seu canto

a verdade vem de tuas margens 

que tentas encobrir


saber que a cada palmo de tuas linhas

há mãos humanas, suor, lágrimas e exploração

ainda que tenhas um poder que te rege

a maior força é das mãos que te construíram 

(ainda que apartadas da tua fruição)

mas um dia, para si, a tomarão


07/12/2022