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quinta-feira, junho 13, 2024

Outra vida


Chegamos a Rondônia num tempo em que a terra ainda era um desbravamento selvagem. Eu me lembro como se fosse ontem. A estrada era de terra batida, serpenteando pela floresta densa e implacável. O ônibus chacoalhava tanto que, a cada quilômetro, eu sentia como se minha espinha fosse se partir. Saímos às seis horas da manhã, e a luz do sol mal tinha despontado no horizonte. O trajeto era uma provação, levando até o anoitecer para finalmente avistarmos as luzes esparsas da cidade.

Naquele dia específico, a tensão era palpável. Em uma das paradas forçadas pelo atolamento do ônibus, fomos abordados pela polícia. Todos no grupo ficaram apreensivos, mas ninguém tanto quanto o João, um camarada robusto e de poucas palavras que tinha se juntado a nós na última cidade. Ele não tinha documento e sabia que qualquer problema com a polícia poderia significar um desvio inesperado e perigoso para seu destino. Com os policiais se aproximando, João se esgueirou para fora do ônibus e se escondeu no mato espesso. Nós seguramos a respiração, esperando que ninguém notasse sua ausência. Felizmente, a inspeção foi rápida e superficial. Assim que os policiais se afastaram, João retornou, suado e com o coração a mil, mas aliviado.

A viagem prosseguiu por aquele mar de árvores e lama. A paisagem era de uma beleza brutal e implacável. Mata para todo lado, uma extensão interminável de verde que parecia engolir tudo. Malária era um fantasma sempre presente, rondando-nos. Víamos gente adoecer e sucumbir à doença quase diariamente. A morte fazia parte do cotidiano, tornando cada novo amanhecer uma vitória.

No meio dessa vastidão, a vida se resumia ao essencial. Nossa comida era arroz, feijão e o que a mata pudesse nos oferecer. Aprendemos a caçar e a pescar, comíamos carne de tatu, de veado, às vezes um porco do mato. Era uma vida dura, mas havia uma estranha sensação de liberdade naqueles dias. Estávamos na fronteira do desconhecido, forjando nosso caminho com coragem e determinação.

Cada viagem à cidade era uma expedição arriscada, marcada pela incerteza do que poderíamos encontrar pelo caminho. Mas havia também uma camaradagem, uma solidariedade entre nós, novos moradores, que fazia com que cada obstáculo fosse um pouco mais fácil de enfrentar. Rondônia era uma terra de desafios, mas também de oportunidades, e nós estávamos ali para enfrentá-los, custasse o que custasse.

quarta-feira, junho 12, 2024

Seringal

 

Na densa floresta amazônica, um homem de passos silenciosos e olhar distante chegou ao seringal. Seu nome era Joaquim, um homem de pele curtida pelo sol e mãos calejadas pelo trabalho. Viera de longe, carregando consigo um passado que preferia deixar nas brumas do tempo. “Pra quê lembrar agruras?”

O seringal era um lugar vibrante, onde os seringueiros e suas famílias lutavam diariamente contra a natureza bruta para extrair o leite das seringueiras, fonte de sua subsistência. Entre eles, destacava-se Maria, uma mulher forte e determinada que, após a morte do marido, assumira sozinha a responsabilidade de sustentar seus filhos.

Maria e Joaquim se conheceram por acaso, quando ele se perdeu no labirinto verde da floresta. Ela o encontrou desorientado e o levou para sua casa. A partir desse encontro fortuito, uma amizade floresceu, dando origem a um amor inesperado.

Pouco tempo depois, Joaquim e Maria se juntaram. A dinâmica que se estabeleceu entre eles era diferente de qualquer outra vista no seringal. Maria continuou saindo todos os dias para extrair o leite das seringueiras, enquanto Joaquim assumiu as tarefas domésticas. Ele cuidava da casa, preparava as refeições, zelava por tudo com dedicação e carinho.

Essa inversão de papéis gerou murmúrios e olhares curiosos entre os vizinhos. No entanto, Joaquim não se deixava abalar. Com o tempo, ele encontrou uma maneira de ganhar o respeito e a admiração da comunidade. Tendo recebido uma educação básica, Joaquim começou a ensinar as crianças do seringal a lerem e escreverem. Ele se sentava com elas à sombra das árvores, desenhando letras na terra e ensinando-lhes o poder das palavras.

As crianças, fascinadas, logo começaram a aprender e a mostrar os primeiros sinais de progresso. A notícia se espalhou rapidamente, e em pouco tempo, Joaquim passou a ser conhecido não apenas como o homem que cuidava da casa, mas como o mestre das letras daquele seringal.

O estranhamento inicial da vizinhança deu lugar a um profundo respeito. O seringal inteiro reconhecia a importância do que Joaquim estava fazendo. Ele e Maria, com sua parceria singular e complementar, se tornaram um exemplo de que o amor e a colaboração podiam superar quaisquer barreiras criadas socialmente.

Naquela comunidade isolada, Joaquim e Maria construíram um novo caminho, mostrando que se as tradições são inventadas, elas podiam ser reinventadas e aplicadas na simplicidade do cotidiano, onde, de fato, está a força para transformar vidas.

quarta-feira, junho 05, 2024

Domus

          Era uma vez, no reino de Asteria, um garoto chamado Domus. Desde cedo, ele conheceu a frieza do mundo, pois sua infância foi marcada pela ausência de amor. Seus pais, ambos guerreiros destemidos, estavam sempre ausentes, lutando batalhas distantes e buscando glórias que jamais pareceriam tocar o coração de Domus.

Sem carinho e orientação, Domus cresceu isolado, encontrando consolo apenas na natureza ao seu redor. No bosque atrás de sua casa, havia uma árvore majestosa que ele chamava de Velha Sábia. Era uma figueira robusta com galhos que se estendiam como braços acolhedores, oferecendo sombra fresca e um refúgio seguro. Naqueles dias solitários, Domus passava horas brincando à sua sombra, escalando seus ramos e construindo uma pequena casa de madeira em seu tronco. Lá, ele se sentia compreendido e protegido, como se a árvore fosse sua verdadeira família.

Com o tempo, a vida o afastou de sua infância e das poucas alegrias que conhecera. Os anos passaram e o coração de Domus endureceu. Ele se tornou um homem amargo, carregando um ódio profundo por tudo e todos. Seu olhar era uma chama de fúria contida, e muitos diziam que, ao se sentir afrontado, seus olhos pareciam incendiar de ódio. Sua raiva se transformou em uma arma poderosa, que ele usava para se vingar daqueles que cruzavam seu caminho.

Em uma noite tempestuosa, enquanto o trovão ecoava pelas montanhas e a chuva caía pesadamente, Domus foi atraído por uma força invisível de volta ao bosque de sua infância. Seus pés, guiados por uma memória distante, o levaram até a Velha Sábia. Ao vê-la novamente, mesmo desgastada pelo tempo, ainda se erguendo imponente contra a fúria da tempestade, algo dentro dele começou a se quebrar.

Ele caminhou lentamente até a árvore e colocou a mão em seu tronco áspero. Instantaneamente, uma onda de lembranças o inundou. Viu-se novamente menino, rindo e brincando, sem as preocupações que agora pesavam sobre seus ombros. Sentiu a alegria pura e o amor silencioso que a Velha Sábia lhe oferecera.

Domus caiu de joelhos, as lágrimas se misturando com a chuva em seu rosto. A árvore parecia sussurrar segredos antigos, curando as feridas profundas de seu coração. Sentado ali, sob a copa acolhedora da Velha Sábia, ele permitiu que o ódio fosse lavado de sua alma. Aos poucos, a fúria em seus olhos se dissipou, substituída por uma serenidade que ele há muito desconhecia.

A transformação de Domus foi profunda e verdadeira. Ele passou a cuidar da Velha Sábia, protegendo-a dos perigos da floresta e restaurando sua antiga casa na árvore. Tornou-se um guardião da natureza, encontrando propósito em proteger e preservar a beleza ao seu redor.

O reino de Asteria viu uma mudança notável em Domus. De um homem temido e odiado, ele se tornou um símbolo de redenção e esperança. Seu olhar, outrora flamejante de ódio, agora brilhava com um amor tranquilo e profundo. E assim, a Velha Sábia não só salvou Domus de sua própria escuridão, mas também trouxe luz e paz para toda a terra de Asteria.

E assim termina a história de Domus, o homem que encontrou a redenção e o amor sob os galhos acolhedores da Velha Sábia. Uma prova de que, mesmo nos corações mais endurecidos, a semente do amor pode florescer novamente.

terça-feira, junho 04, 2024

O navio

       O capitão Jonas Santos era um homem experiente, conhecido por sua firmeza e sabedoria no comando de navios. Seu mais recente desafio era o "Estrela do Atlântico", um imponente navio de luxo que cruzava o oceano, levando passageiros da Europa para a América. A bordo, havia uma clara divisão de classes: a opulenta primeira classe, a confortável segunda classe e a humilde terceira classe.

Naquela noite, enquanto o navio deslizava sob um céu estrelado, o capitão Santos recebeu uma notícia alarmante: uma das caldeiras apresentava uma avaria séria, reduzindo drasticamente a velocidade do navio. Para piorar, o combustível estava acabando rapidamente devido ao esforço extra necessário para manter o curso.

Reunido com seus oficiais, Santos explicou a situação. Eles estavam a dias do porto mais próximo, e a única solução viável seria aliviar o peso do navio. Foi então que uma verdade desconcertante veio à tona: a primeira classe estava abarrotada de bagagens extravagantes e desnecessárias. Objetos de luxo, móveis, até mesmo automóveis, estavam armazenados nos compartimentos destinados aos passageiros mais ricos.

A decisão agora recaía sobre os ombros do capitão. Convocou uma reunião com os representantes das três classes para discutir o dilema. Na sala de reuniões, a tensão era palpável. Os passageiros da primeira classe, vestidos com roupas elegantes, sentaram-se com expressões de desdém. Os da segunda e terceira classe, muitos dos quais trabalhadores e imigrantes buscando uma nova vida, esperavam ansiosamente pela decisão.

— Senhoras e senhores — começou o capitão Santos, sua voz grave cortando o silêncio — estamos enfrentando uma crise que ameaça nossa chegada segura ao destino. Temos que aliviar o peso do navio para poupar combustível e evitar uma tragédia. A primeira classe, com todo o respeito, está carregando uma quantidade exorbitante de bagagens que podem ser dispensadas. Temos duas ações: precisamos descartar os excessos e dividir os recursos de maneira equitativa entre todos os passageiros para garantir que tenhamos o suficiente para a viagem.

Os protestos começaram imediatamente entre os passageiros da primeira classe. Uma senhora de idade avançada, adornada com joias reluzentes, levantou-se indignada.

— Isso é um ultraje! Pagamos uma fortuna para ter nossos bens transportados com segurança! Não aceitamos dividir nossos pertences!

Do outro lado da sala, um homem robusto, com mãos calejadas e vestes simples, levantou-se em defesa dos menos privilegiados.

— Não é justo que alguns de nós tenham que sofrer enquanto outros mantêm seus luxos. Estamos todos no mesmo barco, literalmente. Se não ajudarmos uns aos outros agora, todos nós poderemos não chegar ao destino.

O capitão Santos observava atentamente as reações. Precisava encontrar um equilíbrio que garantisse a segurança de todos. Decidiu devolver a responsabilidade para todos, no seu entendimento parecia complicado apelar para o senso de humanidade e justiça dos passageiros da primeira classe.

— Entendo suas preocupações — disse ele, olhando diretamente para os passageiros da primeira classe. — Peço que vocês se reúnam com seus grupos e decidam o melhor a ser feito, enquanto isso vou tomando outras providências. Mas a decisão final será de vocês. Por ora, proponho que descartemos apenas os itens mais volumosos e pesados que realmente não são essenciais. É preciso decidirem acerca das provisões para que todos tenham o necessário para o restante da viagem, que será longa e árdua.

Cada grupo se reuniu e realizaram debates. A segunda classe estava confortável e não tinha muito o que perder, talvez no máximo um pouco menos de provisão. Quanto aos ricos, chegaram à conclusão que eram uma pequena minoria e que se a terceira e segunda classe juntassem poderiam até mesmo jogá-los ao mar. Os seguranças à sua disposição talvez não fossem suficientes para deter uma rebelião da terceira classe, esmagadora maioria naquela viagem. Quanto ao que era desnecessário, sob a supervisão da tripulação, as bagagens excessivas da primeira classe foram cuidadosamente selecionadas e descartadas ao mar.

Por caminhos distintos, rapidamente a terceira classe chegou ao mesmo resultado da primeira: não havia nada, absolutamente nada a perder, logo se a primeira classe não concordassem, era preciso tomar o navio. Algumas vidas seriam perdidas, porém, “melhor algumas do que todas”, sugeriu uma das lideranças criadas naquele momento de agrura e decisão. Ao mesmo tempo, as provisões foram redistribuídas, garantindo que todos a bordo tivessem comida e água suficientes.

Nos dias seguintes, a atmosfera a bordo mudou. Invés de solidariedade, tensão, os abastados cediam por pressão, não por vontade. A segunda classe dividia em apoio à primeira classe e em solidariedade a terceira. A primeira classe, sempre relutante com as tarefas a ela destinada, começou a arquitetar maneiras acabar com a cooperação reinante. O navio prosseguia sua jornada com mais eficiência, mas ainda tardaria a chegar a seu destino. Havia ainda muito mar por navegar.

Vozes dentro da terceira classe começaram a alertar sobre o perigo daquela aliança, que poderia não durar. Era preciso controlar tudo, afinal a distribuição dos mantimentos continuava a ser realizada pela tripulação, quem garantia que os privilégios não se mantinham para a primeira classe? Embora poucos, ainda tinham maneiras de subornar muitas pessoas.

O "Estrela do Atlântico" seguia viagem, sem possibilidades de resgate, entregue à sua sorte e as decisões de seus passageiros, que finalmente entenderam o que significa realmente estar "no mesmo barco".  Talvez nem todos, pois se havia conspiração no alto, isto é, na primeira classe, havia conjuração na terceira, com alguns aliados da segunda classe. Uma certeza permanecia para todos: a maioria estava na classe mais baixa. Teriam a coragem de tomar totalmente o navio e lhe dá o rumo adequado? A decisão era humana, enquanto a grande máquina seguia seu curso e sua avaria crescia.

sábado, junho 01, 2024

A cidade

Joaquim nasceu e cresceu em uma pequena cidade do interior, cercada por montanhas e campos verdejantes. A vida ali era simples: ele ajudava o pai na lavoura e a mãe na venda de quitutes que fazia em casa. Os dias passavam lentos, marcados pelo canto dos pássaros e pelo tilintar das rodas das carroças puxadas por cavalos e bois que transportavam mercadorias.

Desde cedo, Joaquim sonhava em conhecer a cidade grande, da qual ouvia tantas histórias. Seus olhos brilhavam quando os mais velhos contavam sobre os arranha-céus que tocavam o céu, as ruas movimentadas e as luzes que nunca se apagavam. Então, quando completou dezoito anos, decidiu que era hora de ver com seus próprios olhos o que até então só imaginara.

Ao chegar à metrópole, foi como se tivesse entrado em um mundo completamente novo. Os prédios realmente eram enormes, as ruas fervilhavam de pessoas e o ritmo da cidade era frenético. Tudo parecia maior e mais rápido do que ele poderia ter previsto. No entanto, não foram os arranha-céus ou a correria que mais o impressionaram.

Logo na primeira manhã, enquanto caminhava pelas ruas ainda tentando se orientar, Joaquim se deparou com uma cena que o fez parar e refletir. Em uma esquina movimentada, viu um homem puxando uma carroça. A princípio, pensou que se tratava de um engano: "Não pode ser", disse a si mesmo, "pessoas puxam carroças aqui?".

Mas não era engano. O homem, de pele queimada de sol e roupas surradas, puxava com esforço uma carroça carregada de recicláveis. A cena se repetiu nos dias seguintes, com outras pessoas fazendo o mesmo. Algumas eram idosas, outras jovens, todos com a expressão cansada, mas determinada.

Joaquim não conseguia tirar os olhos daquelas pessoas. Na sua terra, eram os cavalos e bois que puxavam carroças, e sempre havia um cuidado especial com esses animais. Mas ali, na cidade grande, eram os próprios homens e mulheres que se submetiam a esse trabalho árduo.

Ele sentiu uma mistura de sentimentos: perplexidade, tristeza, indignação. A cidade que ele tanto sonhara em conhecer, a cidade das oportunidades, tinha um lado que nunca lhe haviam contado. A luta pela sobrevivência era cruel e implacável.

Passou a observar mais atentamente ao seu redor. Viu a desigualdade escancarada em cada esquina, nos contrastes entre os luxuosos prédios de vidro e as favelas amontoadas. Entendeu que, apesar do brilho e da imponência, havia uma tristeza latente, uma cidade que chorava silenciosamente.

Joaquim foi escarafunchando aquela realidade, olhando onde não se costumava olhar. Foi permitindo que choque de realidade o transformasse. Ele encontrou um albergue onde alguns dos catadores se reuniam e começou a conversar com eles, ouvir suas histórias. Descobriu que muitos eram migrantes, como ele, que vieram em busca de uma vida melhor, mas acabaram nas ruas.

Com o tempo, Joaquim começou a entender a complexidade daquela realidade e percebeu que a cidade grande era feita de múltiplas camadas, cada uma com suas próprias verdades e desafios. Por trás do brilho e da imponência, fruto de tanta riqueza, se esconde ou tenta-se esconder a miséria.

A cidade que o acolheu, com todas as suas contradições, ensinou-lhe uma lição: a aprender a olhar, uma capacidade de enxergar para além do aparente. Aprendeu que o canto da sereia é uma sedução antes de devorar sua presa. Porém, Joaquim logo aprender que saber enxergar é apenas o primeiro passo. A escada à sua frente estava apenas começando a se iluminar e revelar os primeiros degraus.